quinta, 25 de abril de 2024
Crack nem pensar

> ARTIGO

Publicado em 24/03/2021 01h30

O Juiz e o Canoeiro

Uma breve alegoria sobre Direito, Justiça e humildade.

Muito antes de os países existirem na forma atual, com suas fronteiras bem definidas e os poderes do Estado bem delimitados, já havia reis que delegavam a cidadãos de sua confiança a tarefa de julgar as questões entre seus súditos.

Assim acontecia entre os Destros, um povo antigo, que vivia em algum ponto às margens do Mediterrâneo, antes de serem submetidos ao Império Romano, como tantos outros.

Era uma grande honra ser incumbido da função de julgador, porque todos ali sabiam que seu exercício exigia equilíbrio e sabedoria. Juízes insensatos, ou que se deixassem levar por interesses pessoais, acabavam gerando descontentamento entre a população, contribuindo, assim, para o descrédito do próprio soberano.

Sabendo disso, o destro Átrion sentiu um misto de alegria e preocupação, ao ser nomeado juiz. Afinal, tinha pouco mais de trinta anos de idade, e todos os juízes que ele conhecia eram homens de cabelos grisalhos, alguns ostentando longas barbas brancas.

É fato que havia estudado filosofia, na Grécia, e que, há mais de dois anos, era membro do Conselho de Sábios da sua aldeia, mas estaria pronto para a missão de julgar? Durante os dias que se seguiram à sua nomeação, Átrion refletiu muito sobre isso. Por um lado, sentia-se honrado, com o reconhecimento que o rei lhe havia demonstrado; por outro lado, questionava-se se estaria preparado para decidir sobre a vida das pessoas.

Foi assim que, certa manhã, poucos dias antes da cerimônia do recebimento de sua Vara da Magistratura – um cajado que os juízes portavam, como símbolo da sua função – Átrion foi à casa de um experiente magistrado, conhecido como Mestre Aluk, cuja sabedoria era reconhecida por todos os seus pares. Buscava uma palavra que lhe acalmasse o espírito.

Mestre Aluk morava em uma chácara, em uma das muitas montanhas que havia nos arredores da aldeia onde Átrion exerceria suas funções de julgador. O velho magistrado recebeu o jovem com respeito e alegria, e o tratou com as honras de um juiz que já estivesse no exercício da jurisdição.

Encorajado pelo tratamento cordial do experiente julgador, Átrion foi o mais direto possível ao assunto:

– Mestre Aluk, tenho estado atormentado, desde a minha nomeação para o corpo de magistrados do Reino. Não questiono a escolha do Rei, nem nego os conhecimentos que adquiri ao longo de anos de estudo, e de outras funções que tenho exercido. Mas sei que sou o mais jovem dos juízes já nomeados por Sua Majestade. Tenho receio de me faltar a experiência necessária à atuação do julgador.

A partir daí, Átrion passou a tecer uma série de considerações a respeito do estudo, da experiência e da responsabilidade dos juízes.

Mestre Aluk ouviu tudo com atenção, sem demonstrar surpresa. Agradeceu a deferência de Átrion, por buscar seus conselhos, mas, sobre as preocupações expostas pelo futuro colega de magistratura, nada disse. Ao contrário, mudou de assunto e convidou o neófito para uma caminhada.

Depois de quase um quilômetro andando por um caminho aberto na floresta, falando sobre outros assuntos, chegaram a uma clareira, na margem do rio que descia do topo da montanha. Naquele ponto, a água formava ondas e fazia barulho ao se chocar com as pedras, devido à forte correnteza.

Mestre Aluk sentou-se em uma pedra grande, arredondada, e orientou Átrion a sentar-se em outra, semelhante. Parecia ser um lugar para onde o velho magistrado costumava se retirar, quando queria refletir sobre algum assunto.

Depois de uns instantes em silêncio, observando a correnteza, Mestre Aluk retomou a palavra:

– Meu caro Átrion, você sabe que esse rio deságua em um lago, em cujas margens está a aldeia onde você vai morar. Se você fosse contratar um canoeiro, para levar um saca de sal, deste ponto até alguém que mora na aldeia, que comportamento você esperaria do canoeiro?

Átrion percebeu que aquela não era uma simples pergunta sobre o transporte de sal. Pensou por alguns segundos e tentou ser objetivo em sua resposta:

– Mestre Aluk… essas águas são um tanto revoltas. Eu esperaria que o canoeiro conduzisse a embarcação em segurança, sem a deixar virar. Mas também que ele usasse da necessária habilidade para, nos momentos certos, aproveitar a força da água corrente para impulsionar a canoa. Evitando encalhar em algum ponto das margens, ou demorar demais no percurso até o lago.

Mestre Aluk sorriu. Parecia satisfeito com a resposta:

– Então, meu caro Átrion, você sabe como um juiz deve se conduzir. Porque o juiz deve ser como esse canoeiro, transportando o sal. No alto dessa montanha, nasce o rio, que serve de caminho até o lago e a aldeia. As leis do nosso povo, nossos costumes e valores, são como as pedras dessa montanha, de onde brota o rio do Direito. Por ele o juiz deve conduzir sua canoa, transportando a decisão que irá resolver a controvérsia. Observe que, assim como o canoeiro, o juiz não é um ser inerte, que deixa a embarcação ser levada pelas águas, à deriva. Não!

Ele atua, com seu remo, corrigindo o rumo, evitando choques com as pedras… trabalhando para que o rio do Direito o conduza ao lago da Justiça. Mas o condutor da embarcação deve ter consciência de que não pode fazer prevalecer a sua vontade sobre a força do rio.

Se tentar agir assim, provavelmente naufragará. Ou, talvez, entrará tanta água na canoa que dissolverá o sal. Assim, tal qual o canoeiro, que deve usar o poder das águas no cumprimento da sua missão, o juiz deve conhecer as correntes do Direito, para as usar na busca da realização da Justiça. Jamais deve fazer isso por interesse pessoal ou de terceiros, ou mesmo para tentar impor ao povo a sua própria noção do justo. O sal da Justiça deve ser entregue ao seu destinatário, na aldeia, e não deixado nas margens do rio, ou dissolvido em suas águas.

Após ouvir aquelas palavras, Átrion olhou detidamente para o rio, imaginando-se conduzindo a embarcação sobre as águas. Vários pensamentos vieram-lhe à mente, mas se limitou a dizer:

– Espero ter a humildade necessária, Mestre Aluk, para saber conduzir minha pequena canoa, entregando o sal da Justiça às pessoas da aldeia.

– Você a terá. Tenho recebido notícias de sua conduta no Conselho de Sábios. Muitos comentam do seu equilíbrio, sua humildade e seu senso de Justiça. Agora, vamos voltar à minha casa. Deve haver um bule de chá quentinho à nossa espera.

 

*Marcos Mairton da Silva é juiz federal, mestre em Direito Público (UFC) e MBA em Poder Judiciário (FGV Rio). Escritor, poeta, cordelista e compositor, é editor do blog Mundo Cordel e mantém intensa atividade literária por meio de sua coluna "Contos, Crônicas e Cordéis", no blog Jornal da Besta Fubana.

 


tags
Nenhum resultado encontrado.

Comentar

Bookmark and Share